João Ferreira Rosa
Fado do Embuçado
[Dedicado a El-Rei Dom Carlos]
Gabriel de Oliveira (“Gabriel Marujo”)


Noutro tempo a fidalguia
que deu brado nas toiradas
andava pela Mouraria
e em muito palácio havia
descantos e guitarradas


A história que eu vou contar
contou-me certa velhinha
uma vez que eu fui cantar
ao salão de um titular
lá para o Paço da Rainha


E nesse salão doirado
de ambiente nobre e sério
para ouvir cantar o fado
ia sempre um embuçado
personagem de mistério


Mas certa noite houve alguém
que lhe disse erguendo a fala
‘embuçado nota bem
que hoje não fique ninguém
embuçado nesta sala’


Ante a admiração geral
descobriu-se o embuçado
era El-Rei de Portugal
houve beija-mão real
e depois cantou-se o fado
Triste Sorte
Alfredo Duarte (“Marceneiro”)/João Ferreira-Rosa
[1963]


Ando na vida à procura
de uma noite menos escura
que traga o luar do céu
de uma noite menos fria
em que não sinta a agonia
de um dia a mais que morreu


Vou cantando amargurado
mais um fado e outro fado
que falam de um fado meu
meu destino assim cantado
jamais pode ser mudado
porque do fado sou eu


Ser fadista é triste sorte
que nos faz pensar na morte
e em tudo que em nós morreu
andar na vida à procura
de uma noite menos escura
que traga o luar do céu

Arraial 
(Fado Pintéus)
João Ferreira-Rosa
[1975]

Acabou o arraial
folhas e bandeiras já sem cor
tal qual aquele dia em que chegaste
tal qual aquele dia meu amor
Para quê cantar se longe já não ouves
o nosso canto ainda está na fonte
o nosso sonho nas estrelas do horizonte 


Ainda nasce a lua nos moinhos
ainda nasce o dia sobre os montes
ainda vejo a curva do caminho
ainda os mesmos sonhos as mesmas fontes


Sabes meu amor não estou sozinho
pelas salas do silêncio em que te escuto
abro as janelas ainda cheira a rosmaninho
vejo-me ao espelho
ainda vejo luto
Portugal Foi-nos Roubado
Popular/João Ferreira-Rosa
[1976]

Portugal foi-nos roubado
há que dizê-lo a cantar
para isso nos serve o fado
para isso e para não chorar


cinco de Outubro de treta
o que foi isso afinal
dona Lisboa de opereta
muito chique por sinal


sou português e por tal
nunca fui republicano
o que eu quero é Portugal
para desfazer o engano


os heróis republicanos
banqueiros, tropa, doutores
no estado em que ainda estamos
só lhes devemos favores


Outubro Maio e Abril
cinco, dois oito, dois cinco
reina a canalha mais vil
neste branco verde e tinto


Sou português e por tal
nunca fui republicano
o que eu quero é Portugal
para desfazer o engano

Armas Sem Coroa 
(Fado Santarém)
João Ferreira-Rosa
[1979]


Se te disser meu amor que te não queria
já te mentia, meu amor, já te mentia
se te dissesse que te não quis
era feliz, meu amor, era feliz


O que te digo nesta voz que por ti canta
é a saudade que há em nós quase magia
e nos transforma este grito na garganta
de solidão meu amor em companhia


Dizer que o fado foi sina que Deus nos deu
é um pecado meu amor que brada ao céu
dizer que o fado é canção nacional
é bestial, de Lisboa, é bestial


Nunca te esqueças nós já fomos Portugal
antes da morte daquele Rei daquele soldado
o que hoje somos não votámos afinal
armas sem coroa num pano verde-encarnado
Ouvi Cantar as Janeiras
Popular/João Ferreira-Rosa
[1976]


Ouvi cantar as Janeiras
em terras de Portugal
vi milho-rei desfolhada
fados tristes por meu mal


Ouvi cantar as Janeiras
no meio do olival
bacalhau, por cima azeite
vinho tinto, bom Natal


Ouvi cantar as Janeiras
mais tristes, triste sinal
dos anos que vão correndo
somente esperança afinal
ouvi cantar as Janeiras
quem me dera Portugal

Fadista Velhinho
Alfredo Duarte (“Marceneiro”)/João Ferreira-Rosa
[1954]


Um fadista já velhinho
muito triste coitadinho
contou-me quase a chorar
as saudades do passado
em que ele cantava o fado
que todos queriam escutar


Contou-me então como eram
as noitadas que fizera
fadistas e cavaleiros
o alegre São Martinho
nos retiros com bom vinho
e o calor dos fogareiros


De olhos semicerrados
baixinho lembrou uns fados
sua tristeza aumentou
Mas parando de repente
olhando-me bem de frente
com voz mais firme afirmou:


A minha grande tristeza
não me é dada pela pobreza
nem lembranças que contei
É o medo de morrer
sem de novo poder ver
Portugal ter o seu Rei
Portugal Verde Encarnado
(Fado Minho)
Francisco Viana/João Ferreira-Rosa
[1976]


Portugal verde encarnado
cor de esperança e maldição
quem te fez fado magoado
quem te roubou a canção


Sou senhor e teu criado
meu pai e meu irmão
na tua voz o meu fado
gritando libertação


Renego um reino fardado
em vez dum povo traição
Belém, São Bento, Chiado
mascarados de ilusão


Assim se seremos só fado
sem saber qual a razão
do Rei povo assassinado
de Portugal na prisão

Neste País
João Ferreira-Rosa
[1975]


Neste País
onde longe nos mataram
um Rei, um Povo
a vontade de viver
ouvi que riam
ouvi também que choravam
e que cantavam
a alegria e o sofrer
Doce País
aquele que lembra a saudade
triste País
aquele que podemos ver
Neste País
encontrei o pensamento
que há no olhar
a cor do céu
a cor do chão
ouvi chorar
e cantei o sofrimento
pois por te amar
é minha a voz
tua a canção
canção-fado
Rei-Povo que nos mataram
que é do pecado
que é da flor
que nos roubaram
Neste País
onde sonhei felicidade
nasci Lisboa 
mas bem longe fui viver
andei Luanda
crescendo a minha idade
estrelas do mar
jamais consegui esquecer
estrelas do mar
quantas salvei de morrer…
Neste país onde longe nos mataram…
Neste País
João Ferreira-Rosa
[1976]


Neste País dá-nos a vida saudade
de quantos sonhos se perderam pelo mundo
Neste País foi roubada a liberdade
a quem não sabe e jura um farrapo imundo


Cada canção se vai tornando mais Fado
e a solidão cada dia do passado


Este País, que tem a alma esquecida
da realidade, da prova do nosso amor
foi ocupado pela tropa regicida
por isso o povo para cara a sua dor


Cada canção se vai tornando mais Fado
e a solidão cada dia do passado


Neste País emigramos sem cessar
tal como os Reis no exílio da amargura
Neste País neste céu e neste mar
qual é a causa desta nossa desventura?


Cada canção se vai tornando mais Fado
e a solidão cada dia do passado